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1. Menos crítica

No essencial, o exercício da crítica é bastante prosaico: consiste em ajuizar aquilo que nos rodeia. Assim sendo, é hoje difícil não ser crítico, já que tudo é avaliado: o esgar do apresentador de televisão é crítico em relação à notícia; os títulos dos jornais subentendem muitas vezes ironia ou humor; comentários insultuosos enchem as caixas dos sites noticiosos. A distância crítica é cultivada, mesmo se às vezes essa distância é apenas o curto espaço que vai do teclado ao post no blogue X. A distância crítica funciona hoje à queima-roupa, de tanto se ter interiorizado a sua necessidade. 

Nos nossos dias, a opinião é o substituto, o adoçante da crítica. O comentário é a versão resumida da opinião. Os smileys são a versão resumida do comentário. Abaixo do smiley há ainda o insulto. A subjectividade e a democraticidade estão garantidas; o vínculo com quem lê é precário: é só uma opinião, ouve lá. A fotografia da cabeça cortada dos opinion-makersnos jornais significa: são pessoas como nós, menos o corpo. A crítica – nestes vários graus:opiniãocomentáriosmileyinsulto – anda na rua ou na web, o que é semelhante. O que não é crítica, hoje, isto é, acusação, ressentimento, desejo, paranóia?

Sendo cada arquitecto um crítico no activo, ou um potencial Tafuri, de certa forma ser crítico pode significar ser menos crítico, isto é, encontrar espaços onde se desacelera, se cria um entendimento e se conclui pelo melhor. Num espaço competitivo como o da arquitectura, crescentemente tomado pela intriga e pelo ressentimento, ser crítico pode ser a procura de sentido no espaço intersticial entre a teoria e a promoção/reportagem, as duas principais formas de discurso à volta da arquitectura na nossa época. Voltarei a esta questão no final do texto.

Quando se tende para a entropia e para a anulação de sentido, a crítica pode ser a tentativa de focar um determinado objecto em movimento. De lhe compreender o rasto. De o fazer tocar no chão. Mas já não pode ser a deliberação justiceira, sentencial, por que muitos anseiam. Deste modo, a crítica não seria um objecto a cair num precipício – isto é, definitiva – mas a topografia de uma cratera – isto é, incerta, variável. Com os seus buracos, evidentemente. 

Como escreveu Ignasi de Solà-Morales, já sabemos que a crítica “não é tanto um acto soberano da razão pura mas uma prática que encaminha o comportamento social através de dispositivos que são fruto da convenção”1. A situação actual afasta estas convenções de um sentido único, de uma linha justa, como afirma François Chaslin: “Os críticos podem ainda explicar, comentar e debater [...]; mas de modo algum podem ditar como faziam nos dias do dogma.”2

A crítica de arquitectura não é uma actividade simples porque, desde logo, a arquitectura é uma arte pública. Acreditando em Vitrúvio, afirma Joseph Rykwert, uma das “primeiras formas de discurso humano foi a crítica de arquitectura. [...] A descrição mítica da origem da construção incorpora crítica na sua invenção”3. Seria então algo de natureza antropológica, um instrumento de sobrevivência e melhoramento intrínseco ao próprio desenvolvimento humano. Mas é o encontro desse sentido vital com as abordagens que surgem no Iluminismo4que dá à crítica de arquitectura o carácter complexo que lhe reconhecemos. 
A dualidade senso comum/erudição que sempre persegue a discussão à volta da arquitectura confere à crítica um estatuto difícil, insatisfatório. Nos jornais, os académicos estão à espera de crítica e encontram fluência; os leitores comuns estão à espera de fluência e encontram crítica. Não há como agradar. Não há por onde sair. 

De facto, embora tenha uma lógica de juízo e de confronto, a crítica só tem sentido se prever ou provocar consensos. Se convocar. No quadro do surgimento da crítica literária em Inglaterra, Terry Eagleton situa o crítico como um “porta-voz do público” que “formula ideias que podiam ser pensadas por qualquer um”5. Daí ser importante a legibilidade do que se escreve, o sentido das discriminações que se fazem. Diz Rykwert: “É essa a essência da nossa actividade: discriminação.”6

Uma sensibilidade comum, “aquilo que pode ser pensado por qualquer um”, é hoje difícil de circunscrever ou imaginar. No limite, cada um tem a sua própria leitura dos eventos, original e crítica, que coloca no seu blogue pessoal. Qual sensibilidade comum? Paradoxalmente, portanto, a crítica seria aquilo que pode unir e não dividir. Se historicamente funciona como um desafio ao establishement – os regimes opressivos no contexto Iluminista, o academismo no contexto das vanguardas, a arquitectura moderna no pós-guerra –, agora pode funcionar como um espaço de convergência. Ou, se se preferir, uma interrupção temporária numa era de emissões contínuas, 24/7

A lógica diarística dos blogues vem resolver uma das pulsões mais profundas da natureza humana: achar interessante o que se pensa e o que se faz, metodicamente, dia após dia. Nos blogues é sempre Groundhog Day, está-se sempre no mesmo dia: o dia em que se diz ao mundo o que se pensa. Este narcisismo também faz parte do exercício da crítica; mas a crítica pressupõe a procura de um consenso que está para lá da confissão, do desabafo ou do insulto. A escrita do blogue é motivada pelo ressentimento e/ou pelo deslumbramento. A crítica também, mas está obrigada a testar essa volatilidade no sentido de uma sensibilidade comum no “espaço público”. Como afirma António Guerreiro, “muito pouco daquilo que desapareceu nos jornais voltou a reaparecer na Net, [...] apesar da disponibilidade infinita de espaço; em contrapartida, cresceu a opinião ruidosa e tagarela, triunfou a conversa caseira e de café”7.

 

2. As dificuldades da crítica

Não só há uma democraticidade radical nos diversos graus e plataformas onde se pode “criticar”, como a formação escolar incute, desde há algumas décadas, a necessidade de fomentar um “espírito crítico”. Para alguns sectores, em detrimento de uma aprendizagem mais substantiva. Mas a partir do momento em que todos somos críticos, há naturalmente uma perda da “aura” do crítico. O problema está também em que, quando, como se diz, as ideologias ou metanarrativas entram em crise – ou, pelo menos, o horizonte que as sustenta é abalado –, a crítica perde liquidez. O momento em que todos podemos ser críticos coincide com o momento onde ser crítico perde uma função reguladora. O que acrescenta ao facto de sermos todos críticos, é tudo ser belo (Andy Warhol). Não só estamos apetrechados para ajuizar, como afinal tudo é passível de ser amado, o que é um inconveniente. Estamos perante um mundo indiferentemente empático, indistinto, relativo. 

O relativismo cultural da pós-modernidade – e os cépticos que experimentem outra expressão que revele melhor aquilo que nos liga ao nosso tempo – enlouquece o exercício da crítica. Para dar um exemplo: a distinção entre high culture e low culture permitia uma primeira linha de água entre o elaborado e o espontâneo, ou entre o erudito e o comercial, onde a crítica encontrava conforto. Com o fim desta “barreira”, como demonstrou Andreas Huyssen em After the Great Divide8, deixou de haver um nivelamento apriorístico. Os pontos de referência são móveis, logo as coordenadas são volúveis, logo a crítica desliza.

Como escreveu Solà-Morales: “Não há um saber histórico, nem técnico, nem visual. [...] É impossível escrever hoje um tratado de arquitectura visto que é impossível ordenar hierarquicamente os conhecimentos técnicos [...]. Nesta situação a crítica desdobra-se, dispersa-se, buscando razões naquilo que Gilles Deleuze chamou dobras do conhecimento, coágulos provisórios de veracidade.”9 Ou ainda, segundo Chaslin: “Não há uma autoridade filosófica mais alta e mais nobre, onde possamos basear o nosso ponto de vista, que a simples obra de arquitectura. Já não podemos racionalizar os nossos juízos, nem referi-los a um registo intelectualmente mais alto.”10

Na arquitectura dos últimos 20 anos assistimos a uma constante troca de lugares, sem que seja clara uma lógica de progressão (ou de retrocesso). As experiências neo-vanguardistas dos anos 1960, a radicalidade política dos anos 1970, a lógica de comunicação dos anos 1980, o acerto rigoroso e frio dos anos 1990 tudo isto se sente na arquitectura contemporânea – muitas vezes na mesma obra. A arquitectura de Rem Koolhaas, para dar um exemplo clássico, não se percebe sem estas várias camadas.

A crítica não pode traçar uma linha recta quando as obras são tortuosas, contêm diferenteslayers de significado, são ubíquas. Herzog & de Meuron significavam uma contenção minimalista nos anos 1990, e agora são “arquitectos de regime” na globalização, concorrendo para o mais excêntrico e o mais sublime; Peter Zumthor, com a retórica da não-imagem, foi criando algumas das imagens mais seguidas da arquitectura contemporânea; o recrudescer do interesse pelo social e pelo moderno retira a arquitectura moderna brasileira do injustobackstage onde passou os anos 1970 e 80 e Paulo Mendes da Rocha é o improvável novo herói; ao mesmo tempo que o desconstrutivismo desaparece como moda intelectual, Zaha Hadid emerge como estrela global.

É interessante observar que uma das últimas linhas de pensamento “heróico” e “justo”, o “regionalismo crítico” de Kenneth Frampton11, nos anos 1980, embora eficaz na crítica aopós-modernismo, tenha despertado tão pouca empatia nos arquitectos visados.

Vivendo numa crise económica e financeira, em que a denúncia da opulência dos muito ricos e poderosos anima discursos neo-neomarxistas, e os amanhãs parecem poder voltar a cantar – mesmo que ninguém saiba qual é a cantiga –, o star-system dos arquitectos seria um sitting duck. Por infelicidade, o grosso dos arquitectos envolvidos tem um trabalho estimável. Não são parasitas. Os excessos do star-system reflectem os excessos da sociedade nas últimas décadas. Mas, em geral, os arquitectos em questão – seja Gehry, Koolhaas, Herzog & de Meuron, Nouvel, Libeskind, Thom Mayne, Zumthor, Sejima, ou outros – são faróis da arquitectura contemporânea. Nem sempre, aliás, há uma correspondência tão forte entre o mérito e o reconhecimento, como acontece aqui. Que a obra de Álvaro Siza seja tão respeitada, prova que a cultura arquitectónica é capaz de celebrar poéticas marginais, e que o star-system não ocupa só o centro da acção. Como sempre há muito lixo no meio das “estrelas”, mas isso faz parte, há sempre quem viaje à boleia, ou nos ombros dos gigantes. Nesses casos, o tempo, mais do que a crítica, encarrega-se de dissipar a confusão. 

Quando o sistema tem a espessura da generalidade das star-architects, a crítica não é evidente e o mal dizer tem os seus limites. A alternativa clássica é defender à outrance tudo o que é novo ou, o equivalente, tudo o que é velho. Há, para o crítico, um último dilema: se é relutante face ao novo tende a ser visto como o homem das cavernas; se está ardentemente a favor, depois de amanhã é o homem das cavernas. A “angústia do futuro”, dizia Manfredo Tafuri em 1986, significa que o “crítico de arquitectura” é alguém “que anda à procura do novo para se ver livre do velho”, num “esquema de destruição contínua” que “contribui para o niilismo do nosso tempo”12.

 

3. A crítica pragmática e a crítica operativa 

Embora inicialmente tenha caracterizado a crítica como uma actividade prosaica, de facto, o seu estatuto é de uma enorme complexidade. Para simplificar distinguiria dois modos: umacrítica pragmática, essencialmente decorrente da cultura anglo-saxónica, onde é cultivada uma abordagem directa e incisiva, com o grande público em mente; e a chamada crítica operativa, em que a análise é feita em nome da projecção de uma ideia, segundo um modelo de “acção” transformadora13. Na crítica pragmática, a legibilidade e a praticabilidade do que se escreve são centrais e o gosto pela polémica serve fins espirituosos e de comunicação alargada. Refiro-me, por exemplo, ao trabalho de Martin Pawley14 ou ao de Paul Goldberger no The New Yorker.

crítica operativa, segundo Tafuri, “projecta a história passada [...] em direcção do futuro” e “força a história [...], dado que, ao investi-la de uma forte carga ideológica, não está disposta a aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada”15. Remetendo já para setecentos, Tafuri aponta Sigfried Giedion e Bruno Zevi como expoentes da crítica operativa: em ambos os casos há “contributos historiográficos” ao mesmo tempo que as suas propostas são “autênticos projectos arquitectónicos”16

crítica operativa remete para uma aspiração in progress, uma luta que continua. É um instrumento na construção de uma metanarrativa – no caso de Giedion, o racionalismo, no caso de Zevi, o organicismo, uma querela séria nos anos 1960. Na crítica pragmática há uma prevalência do senso comum, e na operativa, um horizonte a construir, à imagem dos Iluminismos inglês e francês. 

O caso do próprio Tafuri é excepcional e, em última análise, funciona como sinal do que está a acontecer nesse período. “Todos os grandes mitos caíram, um a um”17, como diz. A “reproblematização” da arquitectura que inicia em Teorias e História da Arquitectura(1968)18, conclui dramaticamente, pela existência de uma ideologia arquitectónica, emProgetto e Utopia (1973)19. As ideologias são aqui entendidas como sistemas “que mascaram a operação do capitalismo”20. Isto é, para Tafuri, a arquitectura moderna opera essencialmente no campo das representações mais do que na real superação das condições físicas. A própria historiografia moderna está assente em “deformações”21. O pessimismo de que a arquitectura moderna é afinal um lugar de manipulações é entendido como uma “morte da arquitectura”, e este pressuposto funda boa parte da produção teórica nas universidades norte-americanas, mesmo com grandes equívocos como assinalam Joan Ockman22 ou Diane Ghirardo23.

Para todos os efeitos, a visão historiográfica de Tafuri colide com a crítica ou historiografia operativa que montou os vários ciclos da arquitectura moderna, contribuindo para o fim do seu estado de graça. A crítica pragmática vai aproveitar ao máximo a corrosão da crítica operativa. A linhagem polémica, taxinómica e celebratória ganha predominância com Charles Jencks, no final dos anos 1970. Os anos 1980 são vividos entre o estertor da crítica operativae uma aceleração do modo pragmático, agora também efusivo, tangencial, publicista, em sintonia com o tempo que se vive. Tafuri abandona a discussão da arquitectura contemporânea. A crítica operativa perde razão de ser também porque começa a rarear o horizonte que a sustenta. A crítica pragmática faz da crítica ao moderno um programa de acção, mas este é essencialmente reactivo, especular. A crítica operativa, ou o que dela resta, ganha uma componente essencialmente resistente e defensiva, patente nos editoriais e artigos de Vittorio Gregotti para a Casabella24 ou nas teses do “Regionalismo Crítico” de Kenneth Frampton, que mencionei. 

A crítica operativa e pragmática têm forte expressão entre os anos 1950 e os anos 1980, um arco temporal que corresponde a um período de crise e de mudança de paradigma, onde a crítica pode florescer, como irei sugerir. 

A discussão levantada por Jane Jacobs, Robert Venturi, Aldo Rossi, Colin Rowe, e nos anos 1980 fixada por Jencks, Paolo Portoghesi e Heinrich Klotz como pós-modernismo, tem ainda uma dimensão crítica. A influência de Tafuri na América, e depois a adopção do desconstrutivismo por Peter Eisenman ou Mark Wigley revelam já um domínio da teoria sobre a crítica.

A partir de então, a crítica operativa e a crítica pragmática tendem a esbater-se na teoria ou, no outro extremo, na promoção/reportagem/lifestyle. Apropriando-se destes dilemas e variações, a produção crítica em Espanha é um caso de estudo muito particular. Desde o final dos anos 1960, elementos da crítica operativa e pragmática confluemforjando uma forte cultura crítica. É em Espanha que podemos seguir a gestão das possibilidades de sobrevivência da crítica. Da ubiquidade lúcida de Rafael Moneo, às leituras elaboradas de Ignasi de Solà-Morales, ao sentido pedagógico de Josep María Montaner, o contexto espanhol é pródigo em tentativas de lidar criticamente com o estatuto da arquitectura contemporânea. Por alguma razão, a El Croquis é a revista-símbolo da globalização na arquitectura, o mal e o bem contidos num só objecto, mais indispensável do que amado. 

É ainda muito interessante seguir o trabalho de mediação que Luis Fernández-Galiano faz na Arquitectura Viva, que dirige, e nos artigos que escreveu no El Pais. O difícil balanço que vai suscitando, entre a tradição da crítica operativa e o carácter apopléctico da nossa era, não impede que tenha sido enquadrado como neoliberal25 ou publicista26. De facto, Galiano procura inteligentemente cruzar a tradição pragmática e o gosto pela controvérsia do filão anglo-saxónico com a dimensão operativa da crítica continental. Essa passagem é evidente no mea culpa que o JA publica neste número: a “crise do mundo” obriga a reconsiderar as “aspirações utópicas da modernidade”, isto é, a retomar a coreografia da crítica operativa. Ao ciclo da orgia, segue-se o ciclo da penitência.

 

4. História e teoria

Chegados aqui, interessa fazer algumas considerações sobre o papel da história e da teoria, de que a crítica é tradicionalmente hóspede. Existem diferenças óbvias entre história, teoria e crítica de arquitectura: meto-
dológicas, de objecto de estudo e de finalidade. Segundo José Mattoso, e estabelecendo uma correlação com a arquitectura, a história é “o exame do passado através da suas marcas, depois a representação mental que desse exame resulta e por fim a produção de um texto escrito ou oral que permite comunicar com outrem”27. A história visa organizar e narrar os eventos de modo a introduzir ordem e sentido na saga humana. O delinear da sucessão de movimentos artísticos, a análise das continuidades e rupturas que introduzem, é um garante de civilização. Às leituras macro tem-se sucedido uma “finura de estratos microtemporais”28, que tem como objectivo afinar e refinar a procura de “positividade” na história.

A teoria de arquitectura contemporânea tem outra espacialidade, embora os objectivos possam ser paralelos: a procura de um “todo” é feita através do entrelaçamento de discursos, e por interpelação mais do que por narração dos eventos. A teoria produz um discurso intempestivo que na história tem de ser contido. A história tem uma vocação ordenadora, a teoria de desmantelamento [disrupt]29. A história lida com a finitude, com o que se perdeu, não só com os fantasmas mas com a própria “morte dos fantasmas”, para retomar a expressão de Paulo Varela Gomes30. Para a teoria está tudo morto ou vivo, é indiferente, porque é num campo fantasmagórico que se move. Mesmo as arquitecturas em ruína, ou as que nunca saíram do papel, podem ser reerguidas a partir de dispositivos teóricos, como o pós-colonialismo, o feminismo ou o neomarxismo.

A história cria suspense a partir do que já aconteceu – como A Corda de Hitchcock; a teoria faz o Pulp Fiction de Tarantino: cruza, modula, liberta, inverte, à procura de um “todo” mais pulsante. A teoria visa apagar o fogo com gasolina, o seu estilo é anárquico e all over the place. Na teoria, o reflexo do presente no passado é exposto, quando na história tende a ser reprimido, em nome da “positividade”. Os próprios discursos historiográficos são a matéria da teoria, que lhes investiga os vícios ou as tentações. A teoria detém um modo discursivo sedutor, com a plasticidade e o poder de “denunciar” as narrativas da história. Como afirma K. Michael Hays, os sucessos e os falhanços da teoria dão a ler “calibrações precisas da própria história de arquitectura”31

A crítica incidiria sobre a paisagem rápida, o quotidiano, e seria a verbalização da experiência. Esta mobilidade discursiva, temática e temporal da crítica de arquitectura foi reivindicada pela teoria. Em particular, a teoria a que me refiro, fomentada e praticada nas universidades norte-americanas, é uma invenção que permite discursar sobre o que aconteceu ontem ou há 200 anos com a mesma legitimidade e conveniência. É a Coca-Cola do pensamento! Ao ponto de, como escreve Hays, a teoria “ter tirado o lugar à crítica de arquitectura e rivalizar com a importância metodológica da historiografia tradicional de arquitectura”32. O modelo discursivo da teoria permite o uso de terminologias comuns a várias disciplinas, possibilitando uma mediação destas com a arquitectura. Segundo Hays, a teoria de arquitectura, “abriu a arquitectura àquilo que é pensável e dizível noutros códigos”33.

Por outro lado, a aspiração à “totalidade do real” tem levado a historiografia a integrar elementos da teoria. Ou a incidir também sobre si própria, uma historiografia da historiografia34. Em contrapartida, o excesso de interpretação tem justificado um acentuar da “positividade”. Como escreve Paulo Pereira: “Haverá quem, do lado do historiador, não queira a sua objectividade (que é sempre, como se sabe, uma construção) eventualmente manchada por um julgamento tendencialmente mais volátil.”35. A defesa da “positividade” da história levou Tafuri, como vimos, a denunciar as “deformações” que a crítica ou historiografia operativa fez à história da arquitectura moderna. A desconstrução destas “deformações” é um dos elementos de fundação da teoria contemporânea. 

Tafuri afirmava: “Não há crítica, só história.”36 A integração da crítica na história parece contraditória com a denúncia que faz da crítica operativa. Em qualquer dos casos, a “positividade” da história surge hoje como um avanço que não se quer trocar por qualquerhistoriografia operativa. Por outro lado, tendo roubado a alma à crítica, a teoria de arquitectura serve os que não se revêem nesta historiografia positivista. 

 

5. Crise e crítica

A crítica dá-se bem com a crise, com quem partilha, aliás, a raiz etimológica. A crise – “o momento mais agudo da doença” –, é afinal o quadro onde esta se pode colocar com maior clareza. Entre os anos 1950 e 1980 são claros os sinais de crise – do moderno – e há uma mudança de paradigma em progresso. Neste contexto, a crítica flui. Há o diagnóstico diferencial, e a medicina, a cura. Durante este período há várias curas a serem testadas, e a crítica é um elemento fundamental nesse processo. A crítica de arquitectura em Portugal, como já pude notar, emancipa-se neste período, particularmente pela mão de Nuno Portas, Pedro Vieira de Almeida e Carlos Duarte.

Actualmente, a “crise do mundo”, para retomar a expressão de Galiano, permite acalentar a ideia da reemergência de uma crítica socialmente desperta e ecologicamente atenta. Aparentemente, o “cinismo” reinante permitiu esconder, também entre os arquitectos, desde os anos 1980, que os problemas sociais não estavam resolvidos. Quem diria. Agora há umwake up call. O social está em todo o lado. Já se devia ter percebido, depois de Tafuri, que, essencialmente, os arquitectos procuram um sistema de ideias que os permita ter trabalho, pensar, projectar e construir. E que registam, como um sismógrafo, o lado para o qual a sociedade se inclina. A seguir virá o não-social, etc. 

O meu ponto é que vivemos desde os anos 1980 num perpétuo “momento mais agudo da doença”Isto é, a crise entrou em velocidade de cruzeiro; a doença afinal é crónica e incurável. Para a crítica funcionar em pleno, a doença tem que se vislumbrar como curável. Quando não se vê a cura, a crítica passa a opinião, comentário, smiley. Já não estamos em crise, propriamente: estamos com a paz e o silêncio do space shuttle depois de entrar em órbita. A crise passou a permanente; é estratosférica. A crítica pode ser o acompanhamento da missão, se se preferir a metáfora espacial; ou uma consulta periódica para manter a doença sob controlo, se se preferir a metáfora médica. 

O exercício crítico significava criar uma “segunda linguagem”, “acima da primeira linguagem da obra”37 como escreveu Roland Barthes. “O crítico desdobra os sentidos”; e “é estéril tentar reduzir a obra a uma pura explicitude”38.

Todavia, hoje, perante a sobrecarga de sentidos que as obras (de arquitectura) integram, talvez o caminho da crítica passe por ser esse espaço de cratera que referi no início. Isto é, o sítio de uma arqueologia do impacto; onde se analisa a origem (a história) e a trajectória (a teoria) do objecto. Temos sempre que voltar ao princípio, isto é, ao Movimento Moderno; e considerar a fonte de propulsão: neo-plasticismo/expressionismo/construtivismo, etc.

(O Movimento Moderno é, de facto, o sítio onde se volta como princípio e fim do mundo. Há uma organização que se dedica a este culto – o Docomomo – e é natural que daqui a algumas décadas venha a transformar-se numa religião, como as outras. Com o seu Messias, Apóstolos, Bíblia e devotos.)

Em qualquer caso, a história é hoje usada como forma de fixar coordenadas, e não já como projecção do futuro, à maneira da crítica operativa. A história não tem o significado futurante que é patente em John Ruskin, Adolf Loos ou Rossi. Funciona essencialmente com um modo de identificação e localização. 

A própria arquitectura construída serve-se da história de um modo pop, isto é, citando referências visuais, óbvias ou obscuras. A crítica usa a história como um manual de instruções, ou ao modo de uma literacia da obra.

Para concluir, diria que a crítica se partiu em dois, como já fui adiantando: a sua expressão comunicante está agora patente nas reportagens e promoções de obras de arquitectura; a faceta mais interpeladora emigrou para a teoria. Há hoje uma espécie de esquizofrenia: entre a densidade, às vezes insuportável, da teoria; e a leveza, às vezes insuportável, da notícia tipo Wallpaper. Entre uma extrema complexificação (a teoria) e a extrema simplificação (a arquitectura como lifestyle). Ambos os géneros encaixam perfeitamente no “mercado”: são produtos coreografados com extremo requinte. O famosostar-system alimenta-os e é por eles alimentado.

Não podendo ser o que era, a crítica pode ser o que está entre a teoria e a promoção. Não sendo a cura, pode ser a consulta periódica com que acompanhamos a doença. Ser uma simplificação sem ser propaganda; usar o excesso de pensamento da teoria sem os excessos da linguagem teórica. Ou ser menos crítico; parar com a vociferação; usar o “espírito crítico” para ganhar espaço e não para galgar paredes. 

Ouve-se rádio na internet e o vinil “nunca foi tão moderno”; talvez a crítica de arquitectura possa ter futuro. Afinal sabe bem um pouco de arqueologia pós-moderna; regressarmos ao momento em que as coisas se precipitaram. E ouvirmos de novo: Houston, we have a problem...|

 

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1 Ignasi Sola-Morales. Sadomasoquismo. Crítica y práctica arquitectónica. in Diferencias. Topografia de la arquitectura contemporánea. Barcelona : GG, 1995, p. 165.

2 François Chaslin. Architecture and Criticism. in Mohammad Al-Asad; Majd Musa (eds.).Architectural criticism and journalism: global perspectives. Kuwait : Aga Kahn Award for Architecture, 2005, p. 21-27, p. 26.

 

3 Joseph Rykwert. Criticism and Virtue. in Mohammad Al-Asad; Majd Musa (eds.).Architectural criticism and journalism: global perspectives. Kuwait : Aga Kahn Award for Architecture, 2005, p. 28-29, p. 28.

 

4 Cf. Jean-Louis Cohen. Da crítica, do gosto, e da confiança. Jornal Arquitectos. Nº 211 (Maio/Jun. 2003), p. 8-15, p.8, e Terry Eagleton. The Function of Criticism. London; New York : Verso, 2005. Ed. orig. inglesa 1984.

 

5 Terry Eagleton, op. cit., p. 21.

 

6 Joseph Rykwert, op. cit., p. 29.

 

7 António Guerreiro. Sobre o espaço público e os seus limites na era da Net. Expresso Lisboa. (12 Dez. 2009). Suplemento Cartaz, p. 37.

 

8 Cf. Andreas Huyssen. After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism.Bloomington: Indiana University Press, 1986

 

9 Ignasi Sola-Morales, op. cit., p. 165-166.

 

10 François Chaslin, op. cit., p. 24.

 

11 Cf. Kenneth Frampton. Prospects for a Critical Regionalism. Perspecta. Vol. 20 (1983), p. 147-162.

 

12 Manfredo Tafuri. Non c’è critica, solo storia. Casabella. Nº 619-620 (Gen./Feb. 1995), p. 96-99. Intervista de Richard Ingersoll, p. 97.

 

13 Cf. Id. Teorias e História da Arquitectura. 2º ed. Lisboa: Presença, 1988, p. 178. Ed. orig. italiana 1968.

 

14 Cf. Martin Pawley. The Strange Death of Architectural Criticism. in David Jenkins (ed.).Martin Pawley Collected Writings. London : Black Dog Publishing, 2007.

 

15 Manfredo Tafuri. Teorias e História da Arquitectura. 2º ed. Lisboa: Presença, 1988, p. 168. Ed. orig. italiana 1968.

 

16 Ibid., p. 182.

 

17 Manfredo Tafuri. I mercati della cultura. Casabella. Nº 619/620 (Gen./Feb. 1995), p. 36-45. Intervista de Françoise Very, p. 37

 

18 Id. Teorias e História da Arquitectura. 2º ed. Lisboa: Presença, 1988. Ed. orig. italiana 1968.

 

19 Id. Projecto e utopia: arquitectura e desenvolvimento do capitalismo. Lisboa: Presença, 1985. (Dimensões.) Tít. orig.: Progetto e Utopia. Ed. orig. italiana 1973.

 

20 Kate Nesbitt (ed.). Theorizing a new agenda for architecture, an anthology of architectural theory 1965-1995. New York : Princeton Architectural Press, 1996, p. 360.

 

21 Manfredo Tafuri. Teorias e História da Arquitectura. 2º ed. Lisboa: Presença, 1988, p. 182. Ed. orig. italiana 1968.

 

22 Cf. Joan Ockman. Venezia e New York. Casabella. Nº 619-620 (Gen./Feb. 1995), p. 56-71.

 

23 Cf. Diane Y. Ghirardo. Manfredo Tafuri and Architecture Theory in the U.S., 1970-2000.Perspecta. Vol. 33 (2002), p. 38-47.

 

24 Cf. Vittorio Gregotti. Le Scarpe di Van Gogh. Modificazione nell’architettura. Torino: Einaudi Contemporanea, 1994. 

 

25 Josep María Montaner, Arquitectura e crítica. Barcelona : GG, 1999, p. 95.

 

26 Juan Diez del Corral. Manual de la crítica de la arquitectura. Madrid : Biblioteca Nueva, 2005, p. 208.

 

27 José Mattoso. A Escrita da História, Teoria e Métodos. Lisboa : Estampa, 1997, p. 16. 1º ed. 1988.

 

28 Paulo Pereira. A leitura da História. Jornal Arquitectos. Lisboa. Nº 211 (Maio/Jun. 2003), p. 47.

 

29 K. Michael Hays (ed.). Architecture I: Theory I since 1968. New York : Columbia Books of Architecture, 2000, p. X.

 

30 Paulo Varela Gomes. Fantasmas. Público. Lisboa (31 Jul, 2010), suplemento P2, p.3.

 

31 K. Michael Hays, op. cit., p. XII.

 

32 Ibid, p.X.

 

33 Ibid, p. XI.

 

34 Paulo Varela Gomes. Crítica, História, Arquitectura. Jornal Arquitectos. Nº 211 (Maio/Jun. 2003), p. 60-65, p.62.

 

35 Paulo Pereira. A leitura da História. Jornal Arquitectos. Nº 211 (Maio/Jun. 2003), p. 47.

 

36 Manfredo Tafuri. Non c’è critica, solo storia. Casabella. Nº 619-620 (Gen./Feb 1995), p. 96-99. Intervista de Richard Ingersoll, p. 97.

 

37 Roland Barthes. Crítica e Verdade. Lisboa : Edições 70, 2007. Ed. orig. francesa 1966, p. 61.  

 

38 Ibid., p. 68.


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